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Glênis Gomes Steckel - A presunção de inocência.

  • Foto do escritor: GLENIS STECKEL
    GLENIS STECKEL
  • 14 de set.
  • 6 min de leitura

Atualizado: 14 de set.


Glenis
A presunção de inocência, um pilar de um estado de direito, enfrenta desafios sem precedentes nos tempos atuais, onde a informação e a condenação se espalham de forma viral.

A Presunção de Inocência e o Perigo Jurídico do Pré-Julgamento Antecipado da Culpa nos Tempos de Hoje

Este artigo explora a presunção de inocência como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, analisando sua fundamentação histórica, constitucional e seu alcance na prática jurídica. O objetivo é demonstrar os perigos jurídicos e sociais decorrentes do pré-julgamento antecipado da culpa, um fenômeno amplificado pela mídia tradicional e, de forma exponencial, pelas redes sociais. A análise demonstrará como a antecipação da condenação, sem o devido processo legal, compromete a imparcialidade do Poder Judiciário, viola direitos fundamentais do acusado e corrói a confiança no sistema de justiça. A conclusão aponta para a urgência de fortalecer as garantias processuais e a educação cívica para assegurar que a justiça seja alcançada de forma justa e imparcial, protegendo a dignidade humana.


1. Introdução: A Essência da Justiça e o Choque com a Realidade Contemporânea

A presunção de inocência não é um mero privilégio concedido ao acusado; é uma garantia fundamental que reflete a escolha de uma sociedade por um modelo de justiça que protege o indivíduo da arbitrariedade do poder estatal. Em sua essência, o princípio estabelece que a liberdade é a regra e a culpa, a exceção, só podendo ser estabelecida após um processo legal completo, justo e irrecorrível.

A relevância deste princípio torna-se ainda mais evidente em um mundo dominado pela informação instantânea. A exposição midiática de investigações criminais e o clamor público por "justiça rápida" frequentemente resultam no pré-julgamento, uma prática perigosa que subverte a ordem jurídica e coloca em risco a imparcialidade do julgamento. A figura do acusado é transformada em vilão antes mesmo que as provas sejam devidamente analisadas em juízo, gerando um "tribunal da opinião pública" que muitas vezes se sobrepõe ao tribunal de direito. Este artigo visa, portanto, analisar o choque entre a garantia constitucional da presunção de inocência e a realidade do pré-julgamento, evidenciando seus impactos jurídicos, sociais e éticos.


2. A Presunção de Inocência: Raízes Históricas e a Força Constitucional

2.1. O Princípio como Contraponto à Arbitrariedade

A presunção de inocência não surgiu de repente; suas origens podem ser rastreadas até o direito romano e a tradição anglo-saxã. No entanto, sua consagração como um direito fundamental se deu com o Iluminismo, um movimento que questionou os julgamentos sumários e a tortura. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu Artigo 9º, é um marco: "Todo homem é presumido inocente até que tenha sido declarado culpado." A partir daí, o princípio foi incorporado em diversas constituições e tratados internacionais, tornando-se um símbolo da luta contra a arbitrariedade estatal.

O jurista italiano Cesare Beccaria, em sua obra seminal Dos Delitos e das Penas (1764), defendeu que o acusado deveria ser tratado como inocente até que a sentença condenatória fosse definitiva. A máxima “in dubio pro reo” (na dúvida, a favor do réu) surgiu como um corolário lógico desse pensamento, servindo como uma garantia contra a condenação injusta.


2.2. A Presunção de Inocência no Ordenamento Jurídico Brasileiro

No Brasil, o princípio é uma cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988, expressa no artigo , inciso LVII: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória." Este dispositivo vai além de uma mera presunção; ele estabelece o marco temporal para a cessação do estado de inocência: a decisão final e irrecorrível da justiça. O texto constitucional eleva o princípio a uma garantia fundamental, orientando toda a produção de prova e a aplicação de medidas cautelares.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido crucial para a interpretação e a aplicação do princípio. A decisao de 2016, que permitia a prisão após condenação em segunda instância, gerou um intenso debate jurídico, sendo posteriormente revista em 2019, reafirmando que a presunção de inocência só se esgota com o trânsito em julgado. Esta decisão histórica reforçou a importância do princípio como uma barreira contra a antecipação da pena.


2.3. Desdobramentos Práticos do Princípio

A presunção de inocência se manifesta em vários direitos e garantias processuais que asseguram um julgamento justo: o ônus da prova, que cabe à acusação; o direito ao silêncio; o direito de ser tratado com dignidade; e o já mencionado in dubio pro reo.


3. A Ascensão do Pré-Julgamento: O Perigo Jurídico nos Tempos Modernos

3.1. O Papel da Mídia Tradicional e o Sensacionalismo

A cobertura midiática sensacionalista de casos criminais de alta repercussão é o principal catalisador do pré-julgamento. A imprensa, muitas vezes em busca de audiência, atua como um "tribunal paralelo", divulgando informações parciais, vazamentos de investigação e opiniões que tendem a demonizar o acusado antes mesmo que ele tenha a chance de se defender em juízo. A narrativa é construída para chocar e indignar, transformando o caso em um espetáculo público onde a culpa já é um fato consumado na mente da audiência.


3.2. A Era das Redes Sociais: Amplificação e Contaminação

O advento das redes sociais intensificou este fenômeno a níveis sem precedentes. Com a facilidade de compartilhamento de informações, boatos e conclusões apressadas se espalham em questão de segundos, gerando linchamentos virtuais e expondo o acusado a um escrutínio implacável. A pressão social se torna avassaladora, criando um clima de hostilidade que pode contaminar todo o ambiente judicial.


3.3. Os Riscos Jurídicos e a Erosão do Sistema de Justiça

O pré-julgamento não é apenas um problema social; ele representa um sério perigo para a integridade do sistema jurídico. Seus efeitos são profundos e duradouros:

  • Comprometimento da Imparcialidade Judicial: Apesar das afirmações que contrarias que a pressão social pode, de forma consciente ou inconsciente, influenciar a decisão de juízes, promotores e, principalmente, jurados. Sabemos que a imparcialidade, requisito fundamental para um julgamento justo, é diretamente ameaçada.

  • Violação do Direito à Ampla Defesa: Quando a imprensa e a opinião pública já "condenaram" o réu, a defesa se torna uma luta desigual. Os argumentos do advogado são vistos com desconfiança, e a presunção de culpa já pesa sobre o acusado, comprometendo sua capacidade de apresentar sua versão dos fatos de forma eficaz.

  • Danos Irreversíveis à Vida do Acusado: Independentemente do resultado do processo, o pré-julgamento causa danos irreparáveis. A reputação, a vida profissional e as relações sociais do acusado são destruídas. A inocência, se comprovada, raramente restaura o que foi perdido, deixando cicatrizes permanentes na vida da pessoa.

  • Prejuízo à Prova: A divulgação de detalhes da investigação pode alertar outros envolvidos, comprometer a integridade das provas ou influenciar testemunhas, que podem ter sua memória contaminada pelo que assistiram na mídia.

  • O "Efeito Punitivo Antecipado": A exposição pública e o linchamento virtual já constituem uma forma de punição, violando a ideia de que a pena deve ser aplicada apenas após o devido processo legal.


3.4. Estudo de Casos

Para ilustrar os perigos do pré-julgamento, o caso da Escola Base, ocorrido em São Paulo em 1994, é um exemplo clássico. Proprietários e funcionários de uma escola foram acusados de abuso sexual de crianças em uma reportagem sensacionalista. O caso, com ampla cobertura da mídia, resultou no fechamento da escola e na destruição das vidas dos acusados. Posteriormente, a investigação policial não encontrou provas dos crimes, e todos foram inocentados. No entanto, o dano social e financeiro foi irreversível.


4. Conclusão e Propostas para um Futuro Mais Justo

A presunção de inocência é a linha de defesa do cidadão contra o poder do Estado e a histeria coletiva. O pré-julgamento da culpa, impulsionado pela mídia e pela ansiedade social por respostas rápidas, é uma ameaça real a esse pilar da justiça. Para mitigar seus efeitos e proteger o devido processo legal, é fundamental:

  • Educação Cívica: É urgente conscientizar a sociedade sobre a importância de respeitar o processo judicial e não tirar conclusões precipitadas. A justiça, para ser justa, precisa de tempo e de todas as etapas processuais.

  • Atuação Responsável da Mídia: A imprensa deve pautar sua cobertura pelo jornalismo de fatos, evitando o sensacionalismo e a apresentação do acusado como culpado antes da condenação definitiva.

  • Fortalecimento da Imparcialidade Judicial: Os tribunais devem se blindar da pressão externa e reforçar a importância de que a decisão seja baseada exclusivamente nas provas dos autos, sem ceder à pressão da opinião pública.


A luta contra o pré-julgamento não é uma defesa da impunidade, mas sim uma garantia de que, no final, a justiça seja justa para todos, sem exceção. O artigo , inciso LVII, da Constituição Federal é mais do que um texto; é um compromisso da nação com a civilidade, com a razão e com a dignidade humana. Apenas ao proteger o direito de um, defendemos o direito de todos.

“A função da defesa consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais."(Rui Barbosa)


Glênis Steckel

Advogado

Pós Graduado em Direito Penal e Processo Penal, Mestrando em Direito Penal (UBA)

 
 
 

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