Dr. Glenis Steckel
- GLENIS STECKEL
- 14 de set.
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Este conceito, embora relativamente recente na legislação e jurisprudência brasileira, representa um avanço significativo na proteção dos direitos da criança e do adolescente e na adaptação do ordenamento jurídico às complexas e variadas formações familiares da sociedade moderna.
Origem e Fundamentos Jurídicos
A socioafetividade não surge do nada. Ela tem suas raízes em princípios constitucionais fundamentais que dão a tônica ao Direito de Família no Brasil. O principal deles é o princípio da dignidade da pessoa humana, que está no cerne da Constituição Federal de 1988. Este princípio garante que cada indivíduo seja tratado com respeito, e isso inclui a proteção de suas relações mais íntimas e significativas.
Outro pilar é o princípio da paternidade responsável, que vai além da obrigação biológica de prover sustento e enxerga a paternidade como um dever de afeto, cuidado e educação. A socioafetividade materializa esse princípio ao dar valor jurídico à figura do pai ou mãe que, mesmo sem laço de sangue, cumpre esses deveres.
Ainda, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, consagrado no Estatuto da Criança e do Adolescente ( ECA), é a estrela-guia quando se trata de socioafetividade. A lei entende que o mais importante para o desenvolvimento de uma criança é ter um ambiente familiar seguro, amoroso e estável. Se esse ambiente é provido por um pai ou mãe socioafetivo, o direito deve proteger essa relação.
A legislação brasileira, embora não tenha um código específico sobre o tema, reconhece a socioafetividade em diversos diplomas legais e, principalmente, em decisões de tribunais superiores. O Provimento nº 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi um marco, ao permitir o reconhecimento extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva, simplificando o processo e dando maior segurança jurídica.
As Consequências da Socioafetividade
Uma vez reconhecida, a socioafetividade gera uma série de consequências jurídicas que são idênticas às de uma filiação biológica ou adotiva. Isso significa que, para todos os efeitos, a relação socioafetiva é vista como uma filiação "completa".
As principais consequências incluem:
Direitos e Deveres Pessoais: A criança ou adolescente passa a ter o direito de usar o sobrenome do pai ou mãe socioafetivo. Da mesma forma, o pai ou mãe socioafetivo assume o poder familiar, com todos os deveres e direitos inerentes à criação e educação.
Direito a Alimentos: O filho socioafetivo tem direito a receber pensão alimentícia do pai ou mãe socioafetivo, caso seja necessário. Este é um dever de sustento que se equipara à obrigação de um genitor biológico.
Direito Sucessório (Herança): Esta é uma das consequências mais importantes. A filiação socioafetiva garante plenos direitos sucessórios. O filho ou a filha socioafetiva é herdeiro necessário do pai ou mãe, com os mesmos direitos de um filho biológico ou adotivo, inclusive na partilha de bens.
Proteção à Dupla Paternidade ou Maternidade: A socioafetividade não exige que a filiação biológica seja desconstituída para que a nova seja reconhecida. O ordenamento jurídico brasileiro aceita a coexistência de dois vínculos de paternidade (ou maternidade): um biológico e outro socioafetivo. Isso é conhecido como multiparentalidade. Essa possibilidade é crucial para proteger a criança que tem vínculos fortes com a família biológica e, ao mesmo tempo, com a família socioafetiva.
Como Requerer a Socioafetividade
O reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva pode ser feito por duas vias principais: extrajudicialmente ou judicialmente. A escolha da via depende das particularidades de cada caso, especialmente se há consenso entre as partes.
1. Via Extrajudicial
A via extrajudicial é a mais simples, rápida e menos burocrática. Ela foi regulamentada pelo Provimento nº 63/2017 do CNJ, que permite o reconhecimento em cartório.
Condições e Procedimentos:
Consenso: É obrigatório que haja concordância entre o pai ou mãe socioafetivo, o filho (se maior de 12 anos) e a mãe biológica (se a filiação a ser reconhecida for a paternidade).
Idade: A pessoa a ser reconhecida como filha deve ter, no mínimo, 12 anos de idade. Se a criança for menor, o reconhecimento só pode ser feito pela via judicial.
Documentação: Os interessados devem comparecer a um Cartório de Registro Civil com os documentos necessários (RG, CPF, certidão de nascimento do filho). É preciso apresentar provas que comprovem a posse de estado de filho, ou seja, que a relação é real e duradoura.
Comprovação da Convivência: A posse de estado de filho é o mais importante. Ela se manifesta em três elementos:
Tractatus: O tratamento como se fosse filho, com cuidado, proteção e educação.
Nomen: O uso do sobrenome do pai ou mãe socioafetivo.
Fama: O reconhecimento social da relação, ou seja, o fato de ser conhecido na comunidade (escola, vizinhança, etc.) como pai, mãe e filho.
Análise do Oficial do Cartório: O oficial do cartório analisa a documentação e os elementos de prova. Ele pode pedir mais documentos, como fotos, comprovantes de matrícula escolar, documentos de plano de saúde, testemunhas, entre outros, para garantir que o vínculo é genuíno e não uma fraude.
Encaminhamento ao Ministério Público: Após a análise inicial, o processo é encaminhado para o Ministério Público, que dará seu parecer sobre a legalidade e a conformidade do pedido. A aprovação do MP é fundamental para a finalização do processo.
Emissão da Nova Certidão: Com o parecer favorável, o cartório emite uma nova certidão de nascimento com o nome do pai ou mãe socioafetivo. A certidão de nascimento original é averbada, e o nome do pai biológico não é apagado.
2. Via Judicial
A via judicial é usada quando não há consenso entre as partes, quando a criança é menor de 12 anos ou quando o reconhecimento é negado no cartório.
Condições e Procedimentos:
Ação de Reconhecimento de Paternidade/Maternidade Socioafetiva: A pessoa interessada deve contratar um advogado para ajuizar uma ação judicial. Esta ação pode ser movida pelo suposto filho, pelo pai/mãe socioafetivo ou pelos herdeiros, no caso de falecimento.
Reunir Provas: No processo judicial, a apresentação de provas é ainda mais importante. É preciso juntar documentos, fotos, prints de conversas, testemunhas, e qualquer outro elemento que comprove a posse de estado de filho.
Análise do Juiz e do Ministério Público: O juiz irá analisar o pedido com base nas provas apresentadas. O Ministério Público sempre intervirá no processo, agindo como fiscal da lei para garantir que os direitos da criança e do adolescente sejam respeitados.
Audiência e Oitiva de Testemunhas: Em muitos casos, o juiz marcará uma audiência para ouvir as partes e as testemunhas, buscando entender a natureza da relação.
Sentença Judicial: Se o juiz se convencer da existência do vínculo socioafetivo, ele proferirá uma sentença reconhecendo a filiação. Essa sentença tem o mesmo valor de uma filiação biológica.
Averbamento da Sentença: Com a sentença em mãos, o interessado deve levá-la ao Cartório de Registro Civil para que o nome do pai/mãe socioafetivo seja incluído na certidão de nascimento, da mesma forma que na via extrajudicial.
Considerações Finais
A socioafetividade é mais do que um termo jurídico; é uma forma de humanizar o direito e de fazer com que ele reflita a realidade da vida. Ao priorizar o afeto, o cuidado e a convivência, o Direito de Família brasileiro se moderniza e se alinha aos princípios de uma sociedade mais justa e inclusiva. O reconhecimento da filiação socioafetiva, seja por via extrajudicial ou judicial, garante que os laços de amor e afeto tenham o mesmo peso e valor que os laços de sangue, assegurando que o melhor interesse da criança seja sempre o norte de todas as decisões.
Este conceito é um lembrete poderoso de que a família não é apenas uma estrutura biológica ou legal, mas um espaço de acolhimento, responsabilidade e, acima de tudo, amor.
Glênis Steckel
Advogado
Pós Graduado em Direito Civil e Processo Civil.



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